Análise



Gourmet de Hino 

Uma pitada de melodia, uma colher de letras bonitas, rima a gosto e um tempero da marca Bom Autor. Aguarde três minutos e retire o hino da forma. Receita leve e prática. Alimento para todo cidadão. Na mesa, cuidadosamente preparada pelo Garçom, um folhetim acompanha a refeição.
A Câmara Municipal aprovou requerimento sobre concurso público para escolha do hino de Parintins. Enquanto se espera o veredicto do Prefeito Municipal, os veículos de comunicação noticiam o fato. Mas qual o discurso sobre a escolha do hino oficial de Parintins é fermentado pela mídia local?
Em meio ao fenômeno copiar/colar no jornalismo parintinense esta análise traz uma pequena fatia sobre a posição assumida e propagada com relação ao concurso na visão do Jornal Novo Horizonte (na edição de 16 a 22 de julho de 2011) e pelo site da Câmara Municipal (noticia postada no dia 08/08/2011 11:39:11). Tudo acompanhado de um cálice da teoria dialógica de Bakhtin.
O interessante é notar e compreender que nos textos analisados, os enunciados incorporam vozes, podendo ser implícitas e explicitas. São vozes de advogados, professores, religiosos, associações, leis e as dos próprios autores que dialogam, não necessariamente procurando um ajuste de idéias, mas um entendimento sobre um objeto.

Alvorada
Após uma leve degustação do Novo Horizonte já dá para sentir o sabor de que o veículo é contrário ao objetivo do requerimento. O jornal segue a tendência de direcionar a visão do cidadão para a importância de oficializar a canção Meiga Flor do Amazonas, de autoria de Dom Arcângelo Cerqua, tida como “hino” da cidade.
Por meio das vozes presentes no discurso, o veiculo acrescenta à receita idéias reveladoras de pensamento tradicional da cidade, como se percebe no trecho da página 3 do caderno Cidade: “Para o vereador Mateus Assayag, que integra o movimento [Ação Comunitária e Cultural de Mãos Dadas em Defesa do Hino de Parintins], assegura que o hino de Parintins é cantado há mais de 50 anos e não deve ser mudado”. Na mesma edição há uma matéria com o título “Um novo Hino para Parintins?”. O tom de inquérito demonstra idéia de inconformismo sobre o concurso. A intenção do questionamento ganha ainda mais sentido após a leitura da linha fina: “Ninguém pode negar e nem apagar o que foi construído. O concurso para a escolha de um novo hino vai de encontro à cultura e tradição da cidade”. Os dois discursos assumem explicitamente a posição a favor da oficialização de “Meiga flor do Amazonas”. Assim, mostra-se um título subjetivo e sem intenção de informar.
A opinião também é apresentada na veiculação de entrevista de radialistas, pesquisadores e advogados que defendem a oficialização da canção.

Demanda popular?
Na edição de 23 a 29 de julho, na notícia da página 7 no caderno Cidade do Novo Horizonte, também nota-se o mesmo julgamento de valor logo no título: “Oficializar o Hino é desejo da população”. O trecho aparece entre aspas, mas não há referência a quem pertence essa fala. A matéria traz fotos de seis pessoas conhecidas por atuarem no cenário governamental em Parintins. A idéia central do texto é divulgar que tais pessoas firmaram o abaixo assinado para oficializar a canção como hino. Para defender a idéia, o jornal apresenta citações indiretas e diretas a favor de Meiga flor do Amazonas e mostra um discurso generalizado do pensamento da população: “Para o ex-deputado Rafael Faraco, oficializar o hino de Parintins é respeitar o desejo da população. ‘É um primor de coração. O povo canta com o coração, não canta porque é bonito, canta porque sente amor por Parintins’”.   
Em nenhum momento as duas edições apresentaram discurso diferenciado. Isso leva a crer que o jornal tomou partido e informa parcialmente, defendendo o favoritismo à oficialização da canção escrita por Dom Arcângelo. O jornal menospreza a abordagem sobre o significado de um hino oficial pra a cidade, que juntamente com bandeiras e brasões é o que a representa.
O veículo também não elenca fatores positivos de um concurso para o fomento da cultura musical na região, divulgação de talentos, democratização e liberdade de escolha, muito menos aborda os critérios usados para escolher o hino no concurso e não apresenta uma leitura critica sobre se a canção usada como hino realmente representa a cidade como um todo (laica, festiva, com belezas não só naturais, mas culturais, e principalmente um lugar onde há miscigenação de povos).  A toda prova das noticias sobre esse tema cai-se sempre no discurso de que se deve manter a canção “Meiga flor do Amazonas” porque ela é cantada há mais de 50 anos ou porque foi escrita pelo primeiro bispo da cidade.

Legislativo
Já ao saborear uma notícia sobre o mesmo tema, mas veiculada no site Câmara Parintins, percebe-se que os discursos estão sendo trabalhados de modo a mostrar outras concepções, como se vê no seguinte trecho de uma nota, da Associação dos Pastores e Líderes Evangélicos de Parintins (APALEPIN), enviada à impressa e incorporada à matéria, nela dizem que: “querem ter a honra de cantar o hino, mas um hino de todos, sem discriminar as pessoas por credo, raça ou ideologia”, ou seja, já apresentou uma voz contrária ao discurso do jornal Novo Horizonte.
Uma vez que todo enunciado é uma replica de outro, que por sua vez gerará um novo discurso, observa-se a seguinte fala do presidente da Câmara Juscelino Manso em resposta a APALEPIN:  “‘De nossa parte fizemos o que manda a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica de Parintins propondo um concurso ou oficialização pela secretária de cultura. Agora estamos aguardando a prefeitura e vamos aprovar o projeto que o prefeito enviar’, comentou.” Nesse discurso Percebe-se ao menos duas vozes, a do próprio presidente e a da lei.
Na mesma notícia há um trecho que deixa claro a oposição de direcionamento entre os veículos e produção de um discurso da Câmara a partir de um outro discurso de meio de comunicação. O presidente da Câmara afirma: “a Câmara foi duramente atacada pela emissora pertencente à Igreja Católica da Diocese, que quer a música ‘Meiga Flor do Amazonas’ de autoria de Dom Arcângelo Cerqua para ser oficializada”.

Ideologia
Tal perspectiva de análise mostra como diferentes veículos se posicionam discursivamente sobre um mesmo assunto. Um afirma a posição contra o concurso e ou outro não se posiciona explicitamente a favor do concurso, porém ao não negar o concurso, está o apoiando, pois à medida que o indivíduo interage com a posição de outrem se posiciona quanto ao que foi dito, uma vez que “um enunciado ocupa sempre uma posição numa esfera de comunicação sobre um dados problema”(FIORIN, 2006, p.21)
Pelo fato do dever do jornalismo não ser apenas informar, mas também formar o público, torna-se de grande importância compreender que os enunciados da mídia são ideológicos, carregados de juízos de valores que influenciam a apreciação do público, neste caso, direcionada a conduta frente ao concurso para a escolha do hino.
E nessa batalha constante, ganha vantagem quem usar um tempero que mais agradar ao paladar de tantos famintos por informação (formação).

Sue Anne Cursino – bacharel em Comunicação Social pela UFAM

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.